Um sentido para a arte

Por:  Walter Miranda
Na maior parte de sua história o homem, em suas distintas culturas, teve como “leit motiv” para a criação de obras artísticas intenções místicas, míticas religiosas, filosóficas, ideológicas, etc. Tudo isso não é relevante se considerarmos que as manifestações artísticas universais tinham e têm em sua origem o intuito da comunicação e isto tem uma função utilitária em qualquer sociedade, mesmo que isso não agrade a alguns teóricos de hoje. Provavelmente, esse desagrado deve-se a que alguns artistas e críticos sempre vêem as diferenças que separam os estilos e conceitos das manifestações e se esquecem de observar o que eles têm em comum.

Sem dúvida a Arte deveria ser representativa da cultura e da sociedade onde surge. Assim sendo, a função social não seria perdida com as variações conceituais da Arte, porém a cultura que é representada é o que mudaria. Nesse sentido, a Arte seria sempre um instrumento de contato com o mundo, uma representação de como o artista encara os problemas materiais e espirituais de sua cultura exprimindo o espirito de seu tempo. Porém, nem sempre isso ocorre assim, porque, em função de um desenvolvimento desordenado da cultura ocidental e um pensamento filosófico errado, onde o homem acredita dominar o que “pensa entender”, ele foi afastando-se paulatinamente do meio ambiente e, em especial, os artistas, foram enclausurando-se em um mundo teórico que tornou, grande parte deles, profissionais isolados da sociedade e, com isso, insensíveis aos problemas coletivos. Esses fatores transformaram a Arte atual em um mundo hermético, sem caráter de fácil identificação e em um instrumento sem função não só no sentido mecânico da palavra função, mas no sentido de integração filosófica, cultural, espiritual, etc., sendo inacessível aos que não pertencem às elites culturais.

Para entender este distanciamento e este enclausuramento, há que repensar as mudanças da Arte através da história e definir meio ambiente como um conjunto de condições materiais e culturais que envolvem os seres vivos.
Na Pré-história, meio ambiente significava a natureza e suas forças, fato que prevaleceu até o inicio das civilizações. Hoje isto significa o universo físico em que vivemos e as influências conceituais da cultura onde se vive. Quanto às mudanças da Arte, comecemos com os estudos que os físicos Michel Menu e Philippe Walter, pesquisadores do laboratório de pesquisas dos Museus Nacionais (situado no subsolo do Museu do Louvre), e Jean Clottes, especialista em Arte Pré-histórica, fizeram usando sofisticados aparelhos de aceleração de partículas. Eles estudaram as pinturas nas cavernas de Niaux e La Vache, na região de Ariége e descobriram que os homens da era paleolítica faziam esboços com carvão do que seria pintado posteriormente, em uma clara demonstração de planejamento das obras, ou seja, de uma reflexão inicial para atingir uma finalidade. Além disso, as análises revelaram verdadeiras receitas na composição dos pigmentos que eram aprimoradas através dos tempos, fato que conservava as obras evitando os craquelês, o que nos permite supor que havia indivíduos que tinham, além das funções gerais, funções específicas nos grupos comunitários da Pré-história.

Independentemente do significado simbólico das obras de Arte do período paleolítico, talvez indecifrável, os estudos aqui mencionados indicam que havia um projeto anterior à pintura, que ela não era imediatista, mas, sim, pensada, bem acabada e feita para resistir ao tempo, ou seja, havia uma intenção de comunicar-se com seus contemporâneos e seus descendentes ou, se alguém preferir, com o inexplicável. Fato que tinha forte função social. Outra conclusão a que se pode chegar, é que o homem paleolítico “refletia” sobre o conjunto de condições materiais e espirituais do universo físico à sua volta, ou seja, o meio ambiente, pois ele não representava apenas a natureza e os animais, haja vista as esculturas de argila também encontradas nas cavernas representando a fertilidade ou as colheitas e que também continham verdadeiras receitas obtidas com a mistura de argila e osso em pó.

Infelizmente a cultura ocidental atual, distanciada do mundo natural devido à tecnologia, confunde representar com copiar e não percebe que o fato de representar o meio ambiente não significa necessariamente um estado primitivo do ser pois, dependendo da postura conceitual, isto significa uma comunhão com o universo em que se vive, o que naquela época significava as forças da natureza. A demonstração desta depreciação está na caracterização de “povos primitivos” que as culturas modernas dão às culturas que não se apropriam do meio ambiente, mas convivem com ele. No transcurso de seu desenvolvimento, o homem tornou-se agricultor, criador de animais, construtor de moradias permanentes formando aldeias, vilas e cidades, fatores que proporcionaram uma organização social das comunidades onde, devido aos excedentes alimentícios, algumas pessoas podiam se dedicar somente ao artesanato que, em um primeiro momento, tinha caráter utilitário. Com o tempo, o homem aprimorou suas habilidades técnicas para cozinhar o barro, fiar, tecer e trabalhar os metais. Provavelmente, este aprimoramento técnico proporcionou mudanças na concepção dos padrões do artesanato criando conceitos artísticos que tinham, além da função utilitária, efeitos decorativos ou religiosos com uma produção, a princípio, destinada a toda a comunidade e, depois, ao consumo das classes dominantes ou privilegiadas, já que o desenvolvimento das sociedades primitivas trouxe a divisão de classes sociais.

Na Antigüidade, o processo artesanal implicava no trabalho físico que era feito por pessoas que exerciam as Artes mecânicas, fato depreciado pelas Artes liberais relacionadas com o trabalho mental, considerado nobre. Entretanto, a produção artesanal estava relacionada com a expressão dos condicionamentos sociais e culturais da época através da abordagem dos poderes da natureza e seus deuses, além da riqueza das classes dominantes e do poder dos governantes.
Na Idade Média, os artesãos faziam parte de Guildas, verdadeiras corporações trabalhistas, e guardavam os conhecimentos técnicos de sua profissão como segredo de estado. Porém, a Igreja fortaleceu-se e passou a exercer um forte controle sobre as Artes, conceituando o que devia ser feito pelos artistas/artesãos. Como exemplo, temos o concílio de Nicéia, ocorrido no ano de 787, que afirmava não ser a invenção dos pintores que determinava a função dos quadros, e sim os princípios planteados pela Igreja católica.

Dessa forma, até aquela época, o que hoje chamamos de Arte e artesanato não tinham distinção e exerciam três funções: Uma utilitária, para uso geral; uma decorativa, onde comprazia as classes privilegiadas e outra de comunicação dos preceitos ditados pela Igreja ou pelos governos. A metamorfose dos pintores e escultores de simples mortais em artistas, ou seja, em seres dotados de “poderes divinos”, é obra dos humanistas neoplatônicos protegidos dos Médicis. A própria idéia de “inspiração” e “dom de Deus” nasceu no ambiente acadêmico de Careggi. Marsilio Ficino, fundador da Academia de Careggi tinha a idéia dominante de que o espírito do artista reflete-se na obra como o espelho reflete o rosto de quem o vê. Este argumento é muito importante porque criou o conceito de obra de arte como conhecemos atualmente, de onde se originou uma nova religião, a religião da Arte, que passou a pertencer a uma elite intelectual como as artes liberais da Antigüidade transformando-se em um ingrediente da vida filosófica e que, em alguns momentos, independeu da Igreja. Além disso, alguns artistas/artesãos do Renascimento tiveram mais glória que os homens das artes liberais. É o caso de Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael e Tiziano, sendo que em todas as discussões entre Michelangelo e o Papa Júlio II quem fez a reconciliação foi o Papa, fato que fortaleceu a idéia de “artista semideus”. Porém, apesar dos momentos de glória e dos momentos de submissão, nessa época, os artistas ainda refletiam o espírito de seu tempo, já que seu trabalho geralmente era integrado ao trabalho de outros profissionais. As catedrais dessa época, por exemplo, apresentam uma completa integração das Artes que resultam em uma produção cultural intensamente relacionada com o que chamo de meio ambiente.

No século XVII os Franceses criaram a Academia Real de Pintura e Escultura (as duas Belas Artes) com uma estrutura que fazia com que os artistas ficassem sob o controle da realeza. Porém, a academia organizou muitas conferências seguidas de debates e discussões sobre estética, beleza, desenho, composição, cor, expressão e outros assuntos conceituais. Tudo isso fez com que os artistas refletissem sobre seu próprio trabalho. Assim, a religião da Arte começou a ter doutrinas peculiares, porém, da mesma forma que a Igreja, também quis sujeitar os artistas, principalmente porque começou a ter como mais importante o conteúdo que a forma. E para fugir da comparação com as artes mecânicas, eles aproximaram-se dos escritores na tentativa de assegurar a suas obras o “STATUS” obtido pela poesia. A partir desse momento, os teóricos do belo e da estética serão ao mesmo tempo os teóricos dos pintores e escultores.

A elite cultural dos séculos XVIII e XIX sob a influência dos problemas políticos e econômicos tornou-se romântica e, com isso, os artistas que valorizavam os conceitos formais também o foram, posto que eles eram considerados seres “desinteressados, despreocupados, cheios de nobreza” sendo o sentimento do belo a única coisa que lhes animava. Surge, então, a expressão “Arte pela Arte” onde a arte não é um meio, mas um fim em si mesmo, sem função aparente. Em contrapartida à “Arte pela Arte” surgiu a arte social que teve sua origem com Diderot e foi reforçada por Proudhon que lamentou não poder contar com os artistas românticos para melhorar a condição humana e social.

A Arte reconquistou, por uns momentos, sua função primeira de comunicação. Os artistas começaram a utilizar a Arte de maneira independente para manifestar suas opiniões filosóficas e ideológicas até que o regime político os impediu de fazê-lo e até que, no século XX, a Arte voltou a mostrar um comprometimento com uma solução social através do expressionismo alemão, da Arte Russa, dos murais mexicanos e outras manifestações isoladas.

Dessa forma, depois da ascensão das Artes mecânicas para as Artes liberais, da metamorfose dos artistas em semideuses e da criação de regras técnicas e conceituais próprias, inacessíveis aos não iniciados, a sociedade não estava mais preparada para receber os artistas, que passaram a viver à margem dela, posto que, em função de um distanciamento do mundo natural e social e de uma racionalização formal, grande parte da Arte já não era inteligível para os demais membros da sociedade, fato que contribuiu, ainda mais, para fazer dos artistas seres solitários, excêntricos e sujeitos a crises de melancolia sendo, algumas, vezes, caracterizados como seres não conformistas e outras como seres alienados, alguns sendo caracterizados como vaidosos e cheios de altas pretensões de gênio e glória e ávidos por elogios, outros sendo caracterizados como altruístas. Tudo isso porque a Arte que não esteja em harmonia com o meio ambiente, não transmite emoções e não cria estados de espírito coletivos, perdendo seu caráter de identificação como Arte e sua função comunicativa, somente sobrevivendo devido ao apoio das elites intelectuais e sociais, não necessariamente comprometidas com as questões do ser humano. Na atual encruzilhada da humanidade, onde os meios de comunicação dirigem todas as culturas sobreviventes para o universalismo, onde as fronteiras políticas não fazem sentido frente aos problemas ecológicos, creio que a Arte necessita voltar a seus primórdios onde os artistas estavam mais integrados à sociedade/meio ambiente devido à provocação de um estado de espírito coletivo e, como os homens do período paleolítico que se relacionavam com o mundo ao seu redor procurando entendê-lo, senão explicá-lo, os artistas necessitam expressar, com o sentido de criação que lhes é implícito e com a carga cultural herdada de seus antepassados, sua visão filosófica do universo cultural atual onde a humanidade vive o grande risco de destruir totalmente o meio ambiente mundial e, consequentemente, a possibilidade de sobrevivência da espécie humana. É necessário integrar-se ao meio ambiente natural e sócio-cultural usando-o como fonte de inspiração e reflexão (não como modelo de cópia) para resgatar os nossos arquétipos porque o homem não é dono do universo e sim faz parte dele. É necessário tornar-se mais humano e, como ser humano, mais coletivo, mais social, integrando suas qualidades às necessidades da humanidade.

Não estou propondo que os artistas tentem fazer uma revolução com as Artes, isto seria ingenuidade, ou mesmo que a Arte represente somente os problemas ecológicos e sociais atuais, isto é pouco e não significa o que entendo por meio ambiente. Penso que da mesma maneira que os artistas de outras épocas utilizaram as formas de comunicação que tinham ao seu alcance para exprimir as idéias de seu tempo, hoje, o artista tem que fazer uso de sua sensibilidade e conhecimento social, cultural, filosófico e tecnológico para, além de exprimir suas ansiedades pessoais, refletir sobre as incoerências do desenvolvimento humano e suas conseqüências além das questões filosóficas, criando assim, uma Arte que seja reflexo da cultura local e da condição humana presente. É preciso ligar novamente a Arte a um sentido de necessidade e suficiência filosófico/espiritual, somente assim ela se tornaria universal. Com isso o artista deixaria de ser marginalizado pela sociedade para tornar-se um membro útil ao desenvolvimento cultural e filosófico da humanidade, posto que cedo ou tarde, os problemas de nossa época nos conduzirão a um novo tipo de ordem cultural mundial, já que de outra forma seria o fim… haja vista os acontecimentos de 11 de setembro último.
Como escreveu Herbert Read: – “Tanto a Arte quanto a sociedade, em qualquer sentido dos termos, têm sua origem nas relações do homem com seu ambiente natural”.

WALTER MIRANDA – Primavera/2002

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